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Os hábitos alimentares dos brasileiros mudaram durante a pandemia?

Questões econômicas, sociais, ambientais, a publicidade e até problemas emocionais influenciam o acesso e consumo de alimentos

Por Jessica Bazzo


Uma alimentação balanceada e variada é importante para o bom funcionamento do corpo e a prevenção de doenças. E, no momento atual, em que vivemos uma pandemia, comer bem se tornou mais do que fundamental para uma boa qualidade de vida.


Desenvolvido por pesquisadores da Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília, e divulgado em abril deste ano, o estudo Efeitos da Pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil revelou que a redução do consumo de alimentos saudáveis chegou a mais de 85% em alguns lares brasileiros. De forma geral, o estudo pode ser incluído na discussão sobre Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), que abrange fome, obesidade, doenças associadas à alimentação inadequada, consumo de alimentos de baixa qualidade ou prejudiciais à saúde, entre outros fatores e temas.


Segundo a nutricionista Nathalia Barbosa e Silva, que atende em consultório há 10 anos, com a pandemia, as pessoas foram estimuladas a ficar mais em casa e passaram a ter acesso em tempo integral à comida, sem horários fixos para as refeições ou rotina alimentar bem estabelecida.


“A maioria passou a cozinhar mais, mas nem sempre alimentos com uma boa densidade nutritiva. Além disso, muitas famílias têm preferido comprar alimentos industrializados, que duram mais tempo na despensa e, esses, são menos nutritivos e mais calóricos que os alimentos frescos ou naturais. Não por acaso, a maior queixa que tenho recebido em consultório é o ganho de peso corporal, pelo isolamento, sedentarismo e aumento no consumo de guloseimas e bebidas alcóolicas como forma de entretenimento”, salienta.

Além disso, para Nathalia, os ansiosos, que já tinham uma tendência maior ao “comer emocional”, foram os mais impactados, em função da montanha russa de sentimentos e emoções vivenciadas pela pandemia, que os fez buscarem mais conforto e prazer por meio da comida.


A nutricionista observa ainda que as pessoas estão demonstrando um maior interesse em cozinhar e aprender a cozinhar, mas, em contrapartida, o setor de alimentação, ao precisar se reinventar, tornou-se ainda mais atrativo, com promoções e opções de pratos diferentes, maior agilidade na entrega e comodidade ao consumidor, entre outras iniciativas, gerando aumento expressivo no consumo por delivery.


A corretora de grãos Lilian Nunes conta que durante a pandemia mudou os seus hábitos alimentares, passando a consumir mais carboidratos e fast food e aumentando a compra de comida por aplicativos. Lilian reconhece que não tem se alimentado bem e tem cedido ao desejo por frituras e industrializados.


“Sou muito ansiosa e quando estou ansiosa acabo comendo muito, nada me satisfaz e nessa quarentena não tem quem não tenha ficado ansioso ou preocupado”, afirma.

Por outro lado, a corretora reconhece que precisa mudar seus hábitos.


“Eu sei que preciso melhorar minha alimentação e que muitas vezes a gente acha que é mais prático, mas não é. Tenho que readaptar minha rotina para me alimentar melhor, pela questão da imunidade e porque, além dos quilos a mais, o corpo está reclamando com dores no estômago e nos joelhos”, conclui.




A servidora pública Sheila Pinna observa que, apesar de não ter feito muitas mudanças na qualidade de alimentos consumidos, o fato de estar em casa, no home office, a fez comer mais do que antes da pandemia.


“Antes, a gente saia de casa cedo, ia trabalhar e parava só para almoçar, às vezes, lanchava ou não, mas, ao ficar em casa, com a disponibilidade do alimento, eu percebi que faço mais pausas para lanchar e acabo comendo mais”, diz. Sheila ainda reconhece que aumentou o consumo de álcool na pandemia. “Sempre gostei de vinho, e, com a disponibilidade e flexibilidade de horários, percebi que estou consumindo mais, acho que pelo fato de ajudar a relaxar e até dormir melhor”, afirma.

Sobre o consumo de álcool durante o isolamento social, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) realizou pesquisa no ano passado apontando aumento no uso de álcool relacionado a problemas emocionais, como estresse, medo e ansiedade, decorrentes da pandemia.


Vale lembrar que os hábitos alimentares são construídos social e historicamente, mas são também e cada vez mais influenciados pela publicidade e propaganda, que, com seus anúncios apelativos, por falta de regulação e por pressão das indústrias de alimentos e bebidas, buscam vender cada vez mais seus produtos e as sensações que estes podem dar. Enquanto alimentos ultraprocessados são atrativamente apresentados como “baratos”, “rápidos de fazer” e “enriquecidos com vitaminas e minerais”, mesmo estando longe de serem uma boa escolha em termos de alimentação saudável, as empresas de bebida, por exemplo, financiam lives de cantores por todo país, com mensagens de “beba em casa” e lucram com a divulgação e serviços delivery.


Para evitar excessos, comer melhor e de maneira balanceada, além de buscar por uma orientação profissional individualizada, a nutricionista Nathalia Barbosa e Silva recomenda que as pessoas pesquisem promoções e, assim, invistam em variedade e qualidade pelo menor preço, aproveitando os alimentos naturais da estação, que estarão sempre mais frescos, nutritivos e saborosos.


A nutricionista destaca ainda que, uma boa alimentação começa pela organização da rotina alimentar, por isso, é importante se planejar e estabelecer horários para as refeições, evitando, assim, criar o hábito de “beliscar” o tempo todo.


“Planejando antecipadamente você consegue comprar, higienizar e pré-preparar os alimentos da semana, o que facilita o consumo consciente e a organização de suas refeições de maneira mais completa e diversificada, com uma boa fonte de proteínas (carnes, ovos e feijões), carboidratos (arroz, batatas, mandiocas, aveia) e gorduras boas (azeite, castanhas e abacate), juntamente com as frutas e verduras da estação”, aconselha.




A farmacêutica Carolina Franco mora com o marido e o filho, um bebê de 1 ano e 4 meses. Ela e o esposo continuaram trabalhando normalmente durante a pandemia e não tiveram a renda comprometida, mas ainda assim sentiram o aumento dos preços na hora de fazer as compras, principalmente, a carne vermelha.


“Estamos optando por comprar mais frango, carne de porco, ovos e comendo mais frutas e verduras”, relata.

Embora mantenham bons hábitos alimentares, procurando variedade de frutas e verduras, Carolina reconhece que isso em parte tem a ver com o fato de ter um bebê em casa.


“Depois do bebê, nossos hábitos mudaram. Eu sou forçada a comprar frutas e verduras toda semana para ele. Antes, a gente tinha até preguiça de fazer mais variedades, agora, temos que investir em uma alimentação variada, por recomendação também da pediatra, o que foi muito positivo para toda a família”, salienta.

Para quem teve a renda comprometida, as coisas ficaram ainda mais preocupantes na hora de ir às compras. Uma pesquisa realizada pelo PoderData no final de março revelou que 67% da população teve o emprego ou renda comprometidos em função da pandemia, e o motorista Wesley Oliveira faz parte dessa estatística. Ele mora com a mulher e três filhas e relata que teve redução de salário e perda de alguns benefícios, enquanto a esposa, que trabalhava fazendo faxina todos os dias, com a pandemia, passou a ter apenas uma diária de serviço por semana.


“No ano passado, minha mulher, beneficiária do Bolsa Família, conseguiu alguns meses de auxílio do Governo, além disso, a gente está recebendo uma cesta básica da escola das meninas, o que ajuda demais. Eu tinha uma reserva financeira, que estava juntando para trocar carro ou dar de entrada numa casa, porque moramos de favor, e com a diminuição da renda e o aumento nos preços, foi tudo embora”, relatou.

Ainda conforme Wesley, as compras no supermercado, que eram mensais, passaram a acontecer a cada dois meses. E, devido ao preço alto da carne bovina, a família passou a consumir mais frango e porco. Fazer feira, que era um hábito semanal, passou a ser algo quinzenal. O motorista percebeu ainda aumento nas outras contas da casa, especialmente em função das aulas on-line.


“Minhas filhas estudam em escola pública e ficavam um bom tempo na escola. Agora, em casa o dia todo, tivemos aumento nas contas de água e energia e também no consumo de alimentos”, observa.

Apesar das dificuldades, Wesley afirma que tem conseguido se organizar e que não falta comida na mesa da família. Infelizmente, a situação não é a mesma para mais de 59% dos entrevistados no estudo Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil, referenciado acima, que passaram por uma situação de insegurança alimentar no último ano.


Outra pesquisa, realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e divulgada em abril deste ano, já mostrava que 116,8 milhões de brasileiros foram acometidos em algum grau de insegurança alimentar nos últimos três meses de 2020, e que 19 milhões enfrentaram a fome neste período, problema este que não deve ser atribuído somente à pandemia, mas a um desmonte do Estado e das políticas públicas de SAN, evidenciado, por exemplo, pela extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2019, e pela falta de programas assistenciais voltados ao atendimento da população de baixa renda, que já vinha sofrendo com desemprego, alta inflação e redução de benefícios.




Alimentação, obesidade e a “sindemia” da Covid-19

Não podemos falar de hábitos alimentares e pandemia sem falar de obesidade, um grande problema de saúde pública que ainda carece de políticas públicas de enfrentamento e que é fator de risco associado ao desenvolvimento de formas mais graves da Covid-19.


Para se ter uma ideia, um estudo da Universidade de Yale divulgado no Portal PEBMED mostrou que a prevalência de obesidade entre os pacientes hospitalizados por Covid-19 foi duas vezes maior.


Diversas pesquisas chamaram atenção para a relação entre a obesidade e a infecção pelo SARS-CoV-2. Uma delas, liderada pelo Dr. Hadar Milloh-Raz, do Centro Médico Chaim Sheba, em Israel, e apresentada no Congresso Europeu sobre Obesidade, que aconteceu on-line, de 10 a 13 de maio, estabelece relação entre o índice de massa corporal (IMC) e a probabilidade de desenvolver COVID-19. Outro estudo, este conduzido pelo Dr. Alexis Elias Malavazos, do IRCCSPoliclinico San Donato, na Itália, sugere que a circunferência abdominal é um índice mais importante do que a obesidade geral na análise da gravidade da Covid-19.


Atualmente, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma pessoa é considerada obesa quando seu Índice de Massa Corporal (IMC) – relação peso/altura (kg/m²) – é maior ou igual a 30 kg/m2. Já a obesidade abdominal está ligada à gordura na região da cintura, medida a partir da circunferência abdominal, na linha da cicatriz umbilical, índice para o qual o National Cholesterol Education Program Adult Treatmen Panel III considera os valores ideais de > 102cm para homens e > 88cm para mulheres. Em 2019, a OMS estimou que no mundo existiam 2,3 bilhões de pessoas com sobrepeso ou obesas.


Diante desse cenário e pensando nos riscos, o medo fez com que o designer gráfico Wilker Lima mudasse seus hábitos alimentares durante a pandemia. Com obesidade grau II, ele perdeu 6kg, mas reconhece que precisa emagrecer mais.


“Comecei a me alimentar de maneira mais saudável, reduzi os pedidos de comida por delivery e a ingestão de carboidratos, cortei o consumo de álcool, melhorei a hidratação e adotei o hábito de fazer exercícios físicos, preocupado com os desfechos da Covid-19 no grupo de pessoas acima do peso”, relata.

Com sobrepeso e visando uma melhor qualidade de vida, o auditor trabalhista Valter Ramos perdeu 18 kg na pandemia.


“Mudei totalmente minha alimentação, passei a fazer mais refeições em casa e, na hora de fazer supermercado, dou preferência a alimentos saudáveis, como frutas e verduras, evitando os ultraprocessados e excesso de açúcar e gordura”, conta. Valter diz ainda que sempre foi muito ansioso e acabava descontando na comida, o que conseguiu controlar adotando a prática regular de exercícios físicos.




A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) caracteriza a obesidade como uma doença crônica, destacando que “ninguém é obeso por falta de vontade ou falha de caráter”, e que a obesidade está associada a uma série de fatores, como o ambiente moderno, o estresse, a diminuição nos níveis de atividade física, o aumento de ingestão calórica, o uso de certos medicamentos, o fato de a mãe ter ganhado muito peso durante a gestação, distúrbios do sono, mecanismo neuroendócrinos e fatores genéticos. Por este motivo, o caminho para perder peso e melhorar a saúde nem sempre é fácil e demanda acompanhamento multiprofissional.


Pensando numa análise ampla da pandemia, suas implicações e complicações da Covid-19, Richard Horton, editor-chefe da revista científica britânica The Lancet, publicou um artigo, em setembro do ano passando, afirmando que se deve observar a pandemia do novo coronavírus com uma abordagem mais abrangente. Para isso, Horton utiliza o termo sindemia, utilizado pela primeira vez pelo antropólogo médico Merill Singer, segundo o qual “interações biológicas e sociais são importantes para o prognóstico, o tratamento e a política de saúde”. Nesse sentido, Horton alerta quanto à necessidade de dar atenção às doenças crônicas não-transmissíveis (como a diabetes, a obesidade e a hipertensão) e à desigualdade socioeconômica para conter a pandemia causada pelo Sars-CoV-2.


Anteriormente a esse artigo, em janeiro de 2019, havia sido divulgado, também na The Lancet, um relatório realizado por uma comissão de 26 pesquisadores, A Sindemia Global da Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas, reforçando que as ações e políticas públicas devem ser pensadas para combater com urgência, e ao mesmo tempo, estas três epidemias. Por meio da parceria entre o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP) e Instituto Ibirapitanga, o projeto Alimentando Políticas disponibiliza a versão em português do sumário executivo e do relatório completo, que pode ser acessado aqui.





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