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No Dia das Mães...

Peço a um anjo que me acompanhe...


Por Mônica Kikuti


Marlenes, Marias, Cristinas, Isauras, Mauras. Mais de 414 mil pessoas se foram com a Covid no Brasil e todas tinham mãe. Biológicas, adotivas. Boas ou más. É gente que veio de alguém. Vidas benditas. Beneditas.

É um baita clichê dizer para você: “Aproveite a tua mãe enquanto há tempo”. É frase que entra por um ouvido e sai por outro, como baboseira de botequim. Não faz sentido para todo mundo, é verdade. Enquanto isto, o óbvio precisa ser dito, “redito”, reeditado todos os dias com uma inexorável certeza de que tudo finda. A finitude está à espreita: observa incontida o momento oportuno. O gran finale. E quando é? Quem pode dizer?


Minha mãe foi desta pra melhor no dia 13 de abril de 2018, depois de cinco dias intubada no pós-cirúrgico de uma apendicite supurada, que, a grosso modo, não costuma acontecer com gente idosa. Ah, mas ela já tinha 80 anos, né? E, mãe pode ser velha, novinha. Ter 100 anos ou 27. Quem ama nunca quer perder.


A morte encontra um motivo? É sentença sem prerrogativa de defesa. E ponto final? Não, quando a gente continua por aqui e a nossa vida revive quem morreu todo dia. É uma lembrança, uma gargalhada, até chinelada. Uma lágrima, um perfume, a flor preferida, a letra no caderno de receita, a comida. É onipresença.


Mãe aperta o calo, espreme a espinha. Tira lágrima e riso. É bolo de milho. Brilho. Abraço de aconchego. É o porto seguro pro medo. Mãe enche o saco. Não dá ponto sem nó. Fala o que tem que ser dito, sem frescura. Pra proteger, pra defender. Até o último minuto, ela não quer nos ver sofrer.


Já faz três anos e sinto falta dela, de contar uma novidade, de pedir um conselho mesmo que fosse para ela acabar com um sonho, arrebentar uma paixão com aquela intuição mordaz que mãe tem. Aquela onisciência que dá até raiva.


Às vezes tenho medo de esquecer como era a voz dela. O jeito que ela ria, a textura da sua pele enrugada, que vez por outra, eu besuntava de hidratante. Ela era chata e era legal. Era doce e azeda. Era vingativa e amorosa. Era prós e contras. Era ela, imperfeita, que eu amava assim. Pronto. Pronta.





Eu me permito chorar, sem piedade. Me acabo e me reconstruo, porque a finitude me observa também.


Acompanhei a exumação dela e do meu pai estes dias, bem na semana do Dia das Mães. A expectativa era me afundar no pântano do luto de novo, embora algo me dissesse: “você vai conseguir passar por mais esta”. A gente nunca sabe o que vai ser, né? O que vai encontrar... Podia ser trauma ou libertação.


Observei tudo com os olhos da finitude. De início, derramei umas lágrimas, que achei que seriam um prenúncio de dilúvio, mas, de repente, veio uma calmaria estranha, uma sensatez, que atribui à força dos meus antepassados, a algum anjo. Ou seriam mesmo os meus pais?


Dei voz aos coveiros, decorei seus nomes. Dei-lhes ouvido e respeito.


- Como foi a primeira vez que você exumou alguém?, ousei perguntar a Lampião, o mais velho da dupla de coveiros.


- Não consegui dormir, mesmo com o cobertor na cara. Só ficava lembrando daqueles ossos, respondeu-me, aceitando uma vulnerabilidade que reaparece quando ele enterra ou desenterra alguém com quem tinha um vínculo.


-Você tem medo de morrer?


- Ah, se eu tenho!


- Quer ser enterrado ou cremado?


- Enterrado. O fogo é muito quente, disse, rindo, fazendo referência ao inferno.


Agora já de mãos dadas com a finitude, a cada osso novo sendo despejado numa caixinha, eu pensava: Pra que se desesperar com boleto, com a dívida ainda não paga, com o serviço que não chega? A vida é breve. E você vai virar um amontoadinho de ossos, onde só importa o seu legado.

Se sua mãe está entre nós, dê-lhe um beijo, escreva uma carta, faça-lhe uma referência por menor que seja. Reconheça seu legado. Faça ou refaça a conexão. Invente algo seu e dela E se ela já não está mais aqui, continue a honrá-la, no verso, no controverso, na prosa, na música. Honre nem que seja só no RG, porque ali não dá para esquecer.


Lanço mão de Emicida para terminar por aqui, sabendo que a saudade continua implacável. Por todo o meu existir.


“Nossas mãos ainda encaixam certo/ Peço um anjo que me acompanhe/ Em tudo eu via a voz de minha mãe/ Em tudo eu via nóis/ A sós nesse mundo incerto/ Peço um anjo que me acompanhe/ Em tudo eu via a voz de minha mãe/ Em tudo eu via nóis”.



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