Professores que criticam o que chamam de “medicalização do yoga”; apontam a tendência ocidental de “vender” a prática como tratamento
Por Karla Marcolino
Descoberto por muitos no último ano, até pela facilidade de acompanhar aulas online em tempos de isolamento social, o Yoga normalmente é visto como uma atividade física de baixo impacto e capaz de gerar bem estar. Incorporado ao SUS como terapia complementar em 2011, também é frequentemente apontado como panaceia.
O site da Secretaria de Atenção Primária do Governo Federal informa que “a prática pode reduzir o estresse, aliviar a ansiedade, depressão e insônia, além de melhorar a aptidão física, força e flexibilidade de maneira geral” e indica-o para “a maioria dos usuários”.
Inúmeras pesquisas têm atestado os benefícios físicos, mentais e emocionais proporcionados pelas técnicas. Há, no entanto, professores que criticam o que chamam de “medicalização do yoga”; apontam a tendência “ocidental” de “vender” a prática como tratamento; exacerbada pelas redes sociais durante a pandemia, e exortam à sua característica original, de busca espiritual.
Eu fiz minha primeira formação em uma instituição com base na Índia, indiscutivelmente holística, administrada por monges, que fazem trabalho social e promovem encontros gratuitos de meditação. E aprendi a relacionar os chakras com as glândulas do sistema endócrino humano. Na apostila do curso, a descrição das posturas contém listas de benefícios. E há um capítulo sobre séries de ásanas específicas para determinados problemas de saúde.
Em aula ninguém fica listando benefícios, ou fica? Mas, nas redes sociais, me acostumei a descrever alguns. Por que não? O problema é passar do ponto. É inegável que a prática contribui para a manutenção da saúde geral e aumenta, por exemplo, a consciência respiratória. Não há nenhum indício, contudo, que ajude a prevenir contra Covid-19, como já vi publicado por aí.
Por essas e outras, colegas como Marina de Boni, especializada em Yin Yoga, alertam:
“Acredito que os professores de yoga em geral devem tomar muito cuidado com a linguagem usada para retratar os benefícios específicos da prática, pois, além de haver muitas informações que são puramente anedotas, os resultados irão depender de vários fatores, como por exemplo, o tipo escolhido, a dedicação do praticante, sua história médica prévia, experiência e idoneidade do professor, entre outros. Professores que tenham realizado cursos em yogaterapia devem estar mais aptos a utilizar linguagens específicas”.
Atribui-se ao Swami Kuvalayananda (1883-1966) o início das pesquisas sobre a aplicação medicinal do yoga, na década de 1920, período em que a yogaterapia proliferou na Índia. E a Swami Vivekananda o primeiro passo para a chegada, deste yoga já modernizado, ao ocidente.
Relacionar a fisiologia sutil a efeitos orgânicos forneceu uma espécie de chancela científica ao que era considerado simbólico, místico, e primitivo, dentro da lógica ocidental, principalmente dos ingleses protestantes. Não custa lembrar Sir John Woodroffe, advogado britânico que foi procurador em Bengali, dirigiu a Suprema Corte de Justiça de Calcutá e, a partir de 1917, traduziu diversos textos clássicos, como o Tantra Sastra. Para explicar os nadis, canais de energia sutil, por exemplo, Woodroffe comparou-os a nervos e artérias.
Voltando ainda mais no tempo observa-se que textos fundamentais, como o Hatha Yoga Pradipika, que estima-se ter sido escrito entre os séculos XIV e XVI, citam benefícios. No capítulo sobre ásanas, por exemplo, diz-se de Matsyendrasana:
“A postura de Matsyendra incrementa o apetite, estimulando o fogo gástrico. É um remédio contra as doenças mais mortais. Com sua prática regular, desperta-se a kundaliní e evita-se a dispersão do néctar que se derrama a partir da lua (referência ao Soma Chakra). Nota-se também um forte conteúdo místico e um certo exagero. E é o mesmo com Mayurasana, a Postura do Pavão: cura rapidamente diversas doenças como o inchaço do abdômen (...); elimina as disfunções provocadas pelo desequilíbrio entre os constituintes corporais; facilita a digestão pesada e ajuda a digerir também o mais poderoso dos venenos, kālakūṭa”.
Considerando-se que o mesmo texto recomenda praticar em cavernas com o chão forrado de esterco (àquele tempo, uma opção antibacteriana) é bom dar um desconto.
No Brasil do século XXI Roberto Simões, pós doutor em ciências da religião e coautor do livro Neurobiologia e Filosofia da Meditação, defende, em seu ensaio Imposturas de Yoga
“Medicalizar o yoga, atribuindo a ele associações como atenuante do estresse, foi a porta que se abriu para os iogues modernos difundirem as suas convicções espirituais entre a sociedade ocidental”.
E cita como melhor exemplo o Prof. Hermógenes, autor dos best sellers Autoperfeição pelo Hatha Yoga e Yoga para Nervosos e um dos principais propagadores da Hatha Yoga no Brasil nos anos 60 e 70.
Outra veterana, Dinah Rodrigues, criou o método Yogaterapia Hormonal há mais de 30 anos, incentivada pelo próprio ginecologista, impressionado com sua saúde aos, então, 63 anos. Hoje aos 94, Dinah brinca que não tira o remédio, mas o médico tira, graças ao sucesso de sua terapia.
Claro que o foco em tratamentos com metodologias específicas é muito diferente de listar os benefícios das posturas individualmente em postagens no instagram. O que, por sua vez, está distante de prometer imunidade ou proteção contra o Covid-19, por exemplo, através do Yoga.
É preciso ter bom senso e honestidade. Reconhecer a verdade da máxima “Mens sana in corpore sano” (mente sã em corpo são), ciente de que alcançar resultados exige constância na prática. Que o máximo que se pode afirmar é que o Yoga contribui para a saúde integral. E cabe ao professor lembrar aos alunos de que não é nem pode substituir seu médico. É importante que o praticante informe sobre incômodos e condições de saúde para que a atividade seja segura. E o Yoga oferece, sim, ferramentas que podem gerar conforto físico. Isso é bom. Se o praticante se interessa também pela filosofia, estuda, se espiritualiza, melhor ainda: o bônus é dele.
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